segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Carteado

E numa arrumação dentro das gavetas de mim,
encontrei esta carta que, um dia, tão carinhosamente, te escrevi.
Tão empoeirada que já nem reconhecia a cor da tinta,
mas não me esqueci da melodia dos versos.
Hoje leio na saudade de quando eras minha
todas as palavras que nem soube te dizer
e todas as que, impensadamente, te disse.
Hoje sei que muitas das letras que encorpam uma carta
foram mesmo feitas para não serem vistas;
que os olhos são meios falhos de enxergar o mundo,
mas funcionam bem quando se quer mostrar a alma;
e que, quando se toca uma alma, não se sai sem deixar marcas.
Dobro, hoje, este papel novamente
pensando se um dia ele tocará suas mãos.
Pensando se ainda poderei sentir o perfume dos teus cabelos longos,
da tua pele...
Eis o encanto do tempo. O que ele me trará eu não sei.
Na verdade, já nem sei se vivi você, morena,
ou se te criei.

domingo, 14 de novembro de 2010

Não calem os calos!

Uri vivia em um pequeno vilarejo e não conseguia um trabalho que fosse julgado digno por sua comunidade. Vivia muito triste, mas alimentava sua família - seu pai havia adoecido uns anos antes. Culturalmente, a população daquele vilarejo obrigava todas as pessoas que pudessem denegrir a imagem do lugar a usarem uma fita, muito forte, amarrada ao pulso. Depois do primeiro roubo (um pedaço grande de pão), Uri foi agarrado e recebeu a tal 'marcação'.

Desde então, anos se passaram. A época era outra já. Uri conheceu um empresário muito rico numa feira do lugar. Vendo a facilidade de comunicação dele, o empresário convidou Uri para trabalhar com ele em seu novo négocio. Uri nunca tinha tido nenhuma oportunidade parecida durante toda a sua vida. Aceitou de pronto!

Com essa nova vida, Uri começou a ver o mundo de outra forma. Saiu do vilarejo; conheceu novas pessoas. Depois do primeiro mês trabalhando, ele descobriu que poderia tirar a fita que era forçado a usar. A notícia trouxe um brilho aos olhos dele de que nem se lembrava mais. Mas, para retirar a fita, ele deveria visitar um monge no alto de uma colina, próxima ao vilarejo.

Na manhã seguinte, Uri acordou muito cedo, colocou uma roupa limpa e saiu de casa, rumando a colina. Caminhou por horas, embaixo de sol forte, até que avistou a entrada de um pequeno bangalô. Enxugou o suor da testa antes de entrar - queria estar apresentável. Imaginava ver uma pomposa porta, mas encontrou uma cortina fina cobrindo a entrada. Passou por ela e encontrou um senhor, pele ressecada, olhos úmidos. Sentou-se em frente a ele. "O que te trouxe aqui deve ser uma excelente razão", disse o senhor, "é uma subida difícil". "Eu fui liberado do uso desta fita", disse Uri, mostrando o pulso, "disseram que eu viesse aqui". "Ah sim... Só um minuto". O homem se levantou, foi até uma prateleira e trouxe uma tesoura brilhante. Ao sentar-se novamente, a manga de suas vestes se levantou e Uri viu um pedaço de pano de cor diferente, muito viva. "O senhor usa essa fita!?" perguntou, assustado. "Mas como isso é possível se o senhor é quem pode tirá-la de mim?" "Sim, eu tiro a fita dos outros, mas não pretendo tirar a minha." Uri ficou abismado. Jamais sentiu felicidade igual ao dia em que descobriu que poderia olhar para todos no vilarejo de frente. "Mas, senhor, perdoe-me a intromissão. Como o senhor se sente podendo não carregar mais o peso de ser diferente e, mesmo assim, optando por continuar com a fita?" O velho homem levantou-se, pegou a tesoura e cortou a fita do pulso do rapaz. Um sorriso nasceu no rosto de Uri. "Olhe seu braço", disse o senhor. Uma marca havia no pulso de Uri por causa dos muitos anos sob o sol, usando a fita. "Não importa que você se vista diferente, que pareça com todos os outros. O que vivemos ficará marcado em nós para sempre. São essas marcas que nos transformam em quem somos hoje. As experiências da vida são pessoais e intransferíveis. Quem não tem marcas é por que não viveu, decidiu ficar em casa assistindo a vida passar. E, por isso, eu mantenho a fita."